Mariza, que superou uma série de situações traumáticas, fundou a Casa da Mulher – Empreendedorismo Feminino, um refúgio dedicado ao apoio e à recuperação de mulheres que enfrentam desafios semelhantes aos que ela venceu no passado
Foi na dor que Mariza Oliveira da Silva descobriu seu propósito de guiar outras mulheres por caminhos difíceis que ela mesma já enfrentou. A trajetória da nossa associada do Donas do Negócio, residente em Três Lagoas (MS), ilustra vividamente como a mulher pode ser a protagonista de sua própria história, mesmo quando tudo aponta para o impossível.
Fundadora da Casa da Mulher – Empreendedorismo Feminino, Mariza não apenas lutou por sua própria sobrevivência, mas também se empenhou em deixar um legado de fé, amor, resiliência e capacitação para mulheres que enfrentam relacionamentos tóxicos e abusivos, muitas vezes dependendo emocional e economicamente de seus parceiros. Na prática, Mariza demonstra como é possível transformar o medo e a desesperança em autoconfiança e autonomia, mesmo em situações de vulnerabilidade.
Hoje, com a ajuda de parceiros, ela tece essa rede de apoio para mulheres que enfrentam adversidades aparentemente intransponíveis. Paulista de nascimento e, como Mariza faz questão de enfatizar, sul-mato-grossense de coração, a empreendedora mudou-se para Três Lagoas há 15 anos, e desde então, tem sido um farol de transformação na comunidade. Sua extraordinária história começa em 1969, na cidade de Assis. Nessa época, o pai viajava a Mato Grosso do Sul para trabalhar na Usina Hidrelétrica, localizada na divisa com o Estado de São Paulo.
“Meu pai trabalhava na barragem, em Três Lagoas, e voltava para Assis, cidade no Oeste Paulista onde nasci e morei até os 5 anos de idade. Em seguida, ele decidiu trabalhar em uma fazenda, localizada em Cassilândia (MS), na área rural. Em casa, éramos cinco irmãos, dois homens mais velhos e dois mais novos. A única filha mulher era eu – a do meio, junto com a minha mãe, dona de casa”, recorda a assistente social.
Do campo à cidade: origem humilde e o raio que mudou sua vida
Mariza afirma que teve uma infância bastante modesta em uma família que valorizava o esforço e a solidariedade. Ela aprendeu com o pai as primeiras noções que a levariam ao empreendedorismo social. “Vivíamos uma vida bastante simples, mas meu pai decidiu abrir uma pequena mercearia e eu o auxiliava como podia no negócio. Acredito que herdei dele essa vontade de estender a mão ao próximo, pois ele ajudava as pessoas que passavam por ali e não tinham sequer o que comer. Minha mãe ficava brava, mas era a natureza dele.”
Após Mariza completar 12 anos, um acidente improvável aconteceu: foi atingida por um raio durante uma tempestade. Esse incidente mudaria, por um longo período, o curso de sua vida. “Estava embaixo de uma lâmpada quando o raio caiu sobre a casa. Eu usava uma corrente de ouro que pegou fogo na hora e derreteu no meu pescoço! Sem falar nas roupas que ficaram rasgadas, queimadas. Quando desmaiei, bati fortemente a cabeça no chão. Consegui sobreviver, mas depois disso, fiquei extremamente fragilizada e tive de tomar remédios por conta desse episódio”, relembra, consternada.
Pouco tempo depois, aos 15 anos, ela se casou. De acordo com seu depoimento, o relacionamento se tornou tóxico e violento logo após um ano de união. “Eu era muito novinha e havia estudado apenas até a quinta série do Ensino Fundamental. Por não ter entendimento suficiente, eu não identifiquei o abuso de cara. Hoje eu tenho certeza que passei por uma lavagem cerebral durante 14 anos de relacionamento abusivo”, constata Mariza.
Rompendo sozinha o ciclo da violência
A empreendedora revisitou duras memórias com dignidade e resiliência. Após enfrentar os abusos físicos e psicológicos, ela relembra a solidão de não ter com quem compartilhar as violências sofridas em casa. “Não contei para minha família porque meu pai tinha problemas cardíacos e era muito severo. Meu medo era que ele passasse mal ou confrontasse meu marido, o que poderia levar a uma tragédia, então suportei tudo em silêncio.”
Mariza era completamente dependente e não tinha autonomia alguma sobre sua própria vida. O ex-marido trabalhava no ramo de fazendas e era o único provedor da casa. Submetida aos caprichos, birras e ironias do ex-companheiro, ela vivia em constante pavor. “Ele bebia e me agredia fisicamente e verbalmente. Sentia um medo imenso quando ele me ordenava a sair, mas era sempre para me humilhar em público, me chamando de vagabunda e ameaçando matar meu pai”, recorda com coragem.
Quando o pai de Mariza ficou doente, ele confessou à filha que poderia não voltar mais para casa. “Meu pai faleceu em 1991 e a única pessoa que me fazia continuar no relacionamento era ele. Eu pensava: quando ele se for, eu separo. Mas antes de partir, meu pai me fez prometer que eu cuidaria da minha mãe e dos meus irmãos mais novos. Por isso, me senti na obrigação de continuar casada.”
De fato, o fim da vida de seu pai marcou o início do processo de libertação do ex-marido. Como ele chegava do trabalho durante a madrugada, acordava somente após o meio-dia. Essa foi a brecha para que Mariza passasse a frequentar, escondida, a escola durante o período matutino sem que ele soubesse. Mariza recorda que o então companheiro saía publicamente com outras mulheres e passava noites em bares. Ao retornar para casa, ela era obrigada a levantar da cama e abrir o portão do carro, mesmo com ele tendo o controle remoto do portão à disposição, entre outras situações humilhantes pelas quais foi obrigada a suportar.
“Ele havia me dado anteriormente um revólver Taurus 22 e me obrigava a atirar. Certa noite, ele chegou bêbado e nosso cachorro não o reconheceu, atacando-o pelo pescoço e causando ferimentos. Quando ele entrou em casa, dei um chute no seu calcanhar e disparei. Aos gritos, ele me chamava de louca, mas declarei que, a partir daquele momento, ele não me bateria mais. Como tinha um arsenal em casa, ele temeu envolver a polícia”, lembrou Mariza.
Nessa época, a empreendedora já estava estudando e recebendo orientação sobre o seu caso. Porém, como ela mesma disse, “morria de vergonha da situação”. O dia mais tenso em sua vida foi quando o ex-marido afirmou, enraivecido, que Mariza tinha um amante. “Ele me colocou dentro do carro e disse que me levaria até a casa desse homem. Eu não tinha ninguém e ele me levou a uma casa que não havia ninguém também. Foi por Deus que não me matou nesse dia”, constatou.
Mariza enfrentou outra situação constrangedora quando uma vereadora de Três Lagoas, ciente de sua situação, a visitou e exacerbou seu sofrimento. “Como ela morava perto de mim, me criticou duramente, dizendo que eu não tinha vergonha na cara e que me faltava coragem para trabalhar e deixar o relacionamento. Aquelas palavras me feriram profundamente. Cheguei a pensar em tirar minha própria vida. No entanto, foi nesse momento que comecei a buscar a Deus e a orar.”
Primeiros contatos com o mercado de trabalho
Mariza gradualmente foi se desvinculando do ex-companheiro, deixando de se preocupar com suas opiniões e destemperos por mais 8 anos. O ponto de virada, em 1999, ocorreu quando uma amiga a convidou para ir a Chapadão do Sul, cidade vizinha, em busca de um medicamento. Ao entrar em um mercado, o proprietário perguntou se ela conhecia alguém interessado em trabalhar no caixa. Imediatamente, Mariza se ofereceu para a vaga.
“Como era fim de semana, prometi que voltaria na terça-feira para começar. Estava buscando uma válvula de escape e encontrei. Naquela época, já estava separada judicialmente e tinha ficado com um imóvel. Um dia, meu ex-marido apareceu no meu trabalho, mas meu patrão impediu que ele falasse comigo para me agredir. Determinada a me libertar completamente, transferi o imóvel para ele. Superei essa fase e hoje somos até amigos. Reconstruí minha vida e, em um novo trabalho em Três Lagoas, conheci meu atual marido, que é uma bênção. Foi então que consegui completar meus estudos e me graduar em assistência social!”, comemorou Mariza.
Após enfrentar muitas adversidades, a empreendedora compreendeu que o ódio do ex-marido era motivado pela falta do amor que sua própria família lhe proporcionava. Hoje, além de empreendedora, Mariza também se tornou pastora, seguindo um caminho transformador marcado por mais um episódio singular em sua vida:
“Em janeiro de 2021, um senhor de bicicletinha parou em frente à minha casa e disse que veio trazer um recado de Deus: eu passaria pelo vale, mas não seria um vale de morte. Naquela época, meu marido teve dengue hemorrágica e o Dr. Delso, uma pessoa excepcional e nosso amigo, decidiu internar ele e a mim devido à covid-19. Nosso amigo notou que eu também tinha dificuldade para respirar. Estava com 89% do meu pulmão comprometido. Passei 30 dias entubada na UTI, num total de 43 dias internada. A equipe médica realizou uma traqueostomia, temendo que minha garganta se fechasse. Cheguei a pedir a Deus para me levar, sem entender o que havia feito de errado para sofrer tanto na minha vida. Havia dúvidas da minha família se consentiria ou não em desligar os aparelhos que me mantinham viva. Foi então que uma enfermeira apareceu para mim e me incentivou a melhorar, dizendo: ‘Levante agora, que Deus não vai te levar.’ Mais tarde, descobri que essa enfermeira nunca existiu no hospital. Posteriormente, foi o Dr. Delso quem descobriu a falta de magnésio nos meus pulmões. Melhorei rapidamente. Deus me disse que me traria de volta porque tinha um plano grandioso para minha vida – meu testemunho é muito poderoso.”
Empreendedorismo e Impacto Social
Em pouco mais de 6 meses, Mariza se recuperou completamente da forma mais severa da covid. Após vencer mais uma batalha pela vida, a empreendedora não apenas redirecionou a sua história; ela também começou a impactar a vida de outras mulheres. Sua experiência profissional lhe proporcionou a base para fundar uma organização sem fins lucrativos bem-sucedida.
Mariza constituiu uma casa de apoio – a Casa da Mulher, que oferece serviços psicológicos, jurídicos e terapêuticos para mulheres. Além de aconselhamento, a casa também disponibiliza cursos profissionalizantes em áreas como costura e beleza, capacitando mulheres a encontrar independência financeira e pessoal. “Eu entendo essas mulheres porque eu vivi as mesmas dores. Eu sei o que é sentir-se sem esperança”, explica Mariza. Prestes a completar 2 anos de existência, a casa conseguiu parceiros importantes, como a Sicredi União MS/TO e Oeste da Bahia.
Um futuro de esperança e cura
Hoje, a Casa da Mulher atende a 18 mulheres, mas tem capacidade para ajudar até 50 participantes. Mariza sonha em expandir o projeto para incluir mais serviços e amparar mais mulheres. Ela também planeja iniciar programas de educação em escolas com o objetivo de ensinar jovens sobre relacionamentos saudáveis e o respeito mútuo, esperando prevenir a violência antes que ela comece.
“Temos casos de mulheres que tentaram tirar a própria vida várias vezes devido a relacionamentos abusivos. Eu me emociono profundamente todas as vezes que ouço suas histórias, pois sei como é passar por isso. Infelizmente, o atendimento da rede oficial muitas vezes não é humanizado. Eu consegui sair dessa situação sozinha, o que não é fácil – Deus me concedeu discernimento, graça e prudência. No entanto, nem todas têm a mesma força, e é exatamente aí que nosso trabalho se faz essencial.”
Legado e reflexões
A Casa da Mulher funciona de segunda à quinta-feira, das 13 às 17 horas, na Rua João Gonçalves de Oliveira, nº 731, localizada na área central de Três Lagoas. Há uma equipe diversificada, incluindo duas psicólogas e uma advogada que atendem diretamente no escritório. Além disso, a instituição conta com duas voluntárias dedicadas à costura criativa e uma à costura tradicional. “Nós adicionamos uma profissional ao nosso salão de beleza, e temos uma voluntária que auxilia em diversas atividades”.
A maioria das voluntárias são mulheres aposentadas e professoras, que contribuem com uma taxa simbólica de 30 a 50 reais. Esse valor é utilizado para comprar tecidos e outros materiais necessários para os cursos oferecidos. Elas também doam retalhos, que são utilizados nos workshops de costura. “Com essas pequenas contribuições, conseguimos manter e expandir nossos serviços, continuando a oferecer suporte essencial às mulheres da comunidade. Toda ajuda é sempre bem-vinda!”
A jornada de Mariza Oliveira é um testemunho da força feminina e da capacidade de superação. Sua história ressalta não apenas as lutas enfrentadas por muitas, mas também o poder da resiliência e do empreendedorismo.
“No meu aniversário, último 23 de dezembro, vivenciei um momento muito especial e revelador. Durante uma reunião, a psicóloga propôs uma atividade lúdica e pediu que todas falassem sobre mim. O que ouvi naquele dia foi verdadeiramente surpreendente. Eles me descreveram como uma pessoa corajosa, que não teme nada, uma qualidade que eu jamais havia reconhecido em mim mesma. Confessaram que não possuíam a coragem que eu demonstrava ao assumir tantos desafios, especialmente ao liderar a Casa, que, apesar de não ter uma renda mensal fixa e enfrentar despesas constantes como aluguel, água e luz, nunca me vi desanimar diante das dificuldades”, disse, emocionada.
Associada ao Donas do Negócio na agência de Três Lagoas, Mariza quer expandir ainda mais os serviços de apoio e recuperação disponíveis para mulheres em situação de vulnerabilidade. “Quando compartilhei essa experiência, enfatizei que meu foco é na recuperação dessas mulheres, ajudando-as a se libertar de suas aflições para que possam retornar à sociedade de cabeça erguida, curadas e renovadas. Este é o propósito que guia meu trabalho e minha vida.”
E finaliza: “se eu venci, elas também conseguem! É tudo uma questão de dar o primeiro passo, de ter coragem para mudar sua história.” No coração de Três Lagoas, Mariza Oliveira continua a ser esse impulso transformador para muitas mulheres, guiando-as em direção a um futuro mais seguro, brilhante e autossuficiente.